domingo, 21 de julho de 2013

Geração Deolinda

Foi há um par de anos numa noite de Janeiro que Ana Bacalhau apresentou uma canção inédita, séria, cujo retorno do público foi avassalador. Em Janeiro, a terra estava fria mas as salas de concerto acolheram calorosa, absoluta e instantaneamente a música que viria a ser um grande sucesso dos Deolinda. Pedro da Silva Martins escreveu e compôs o tema, chamando-lhe: Parva que Sou, e, começava assim: “Sou da geração sem remuneração/ E nem me incomoda esta condição./Que parva que eu sou!”. Este vídeo (de qualidade amadora) comporta o impacto que a música teve por essa ocasião:




Os Deolinda não se enganaram ao acharem que este tema lhes parecia atual. Ainda hoje o é. E ainda hoje (e sempre) a música é um veículo de repercussão, estranho, que nos altera a disposição da alma. Uma canção pode ter esta dimensão: tocar-nos, arrepiar-nos, alegrar-nos. Os Deolinda escreveram o texto sobre o que o mundo via mas ainda não ouvia. Não visionaram tempos fáceis, pelo menos os próximos que estavam por vir: “Porque isto está mal e vai continuar,/ Já é uma sorte eu poder estagiar./ Que parva que eu sou! E fico a pensar, / Que mundo tão parvo / Que para ser escravo é preciso estudar.”

E os mesmos tempos continuam por vir. Aquela realidade entoada está há muito a acontecer, com exemplos em todas as famílias. Na maioria, porvindos dos corredores estreitos das oportunidades de trabalho. São milhares de “parvos” iludidos com as promessas enfatizadas pelas gerações anteriores, ensinamentos de que a ascenção a cada lugar no mundo advém da educação. Vivemos uma nova noção de independência que não o chega a ser e os Deolinda ironizaram a ansia de uma vida diferente: “Sou da geração 'casinha dos pais',/ Se já tenho tudo, para quê querer mais?/ Que parva que eu sou!/ Filhos, marido, estou sempre a adiar / E ainda me falta o carro pagar,/ Que parva que eu sou!”. É, em boa verdade, a ruína dos sonhos de futuro, assumida num hino à contenção mascarada daquilo que se quer viver. Numa palavra: sobrevive-se. E esse estado de existir pela metade não é suficiente. Os Deolinda despertam-nos na parte final da canção, quando Ana Bacalhau dá um grito de basta: “Sou da geração 'eu já não posso mais!'/ Que esta situação dura há tempo demais/ E parva não sou!”. O público aplaude e levanta-se. Trata-se de um retomar fôlego de esperança. A música alberga emoções, e esta em particular é capaz de contagiar a expectativa de mudança e, durante alguns minutos, o mundo parece tornar-se um lugar melhor. 

Dado o tremendo sucesso da faixa, Parva que Sou tem sido, repedidamente, apresentada no alinhamento da banda nas actuações ao vivo, e, entretanto, foi masterizada a partir de um dos concertos para poder ser partilhada e recebida com maior qualidade. Foi decido pelos Deolinda que não seria comercializada, e que estaria disponível na web para download gratuito. Assim aconteceu. E assim o mundo não parece tão parvo, pois não?


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