domingo, 30 de junho de 2013

O lugar Azul

Até hoje, nenhum outro filme superou a minha preferência. E, se de repente, acordamos sozinhos e somos forçados a existir numa nova vida, distante do lugar que nos fez felizes? Isto é BLEU. Krzysztof Kieślowski realizou, Zbigniew Preisner compôs e o resultado é indissociável. Juliette Binoche é, numa representação avassaladora, Julie, quem experiencia despertar no próprio pesadelo terreno e quem aprende a sobreviver nesse lugar sem referência. 

A sua existência é dolorosa porque ela fica só, vagueando consigo própria num espaço sem passado, onde desesperadamente procura aceder ao silêncio, portal para uma liberdade emocional que não lhe assiste. Chamada por um Amor que não sente, acaba por regressar a esse lugar pretérito de onde se auto-excluiu, descobrindo-lhe partes novas às quais não tenta escapar. A nova definição do mundo é propósito do seu regresso à música. E a música é o único ponto de encontro entre um antes perdido na chuva e um depois difuso.  

Bleu é um labirinto fílmico que não poderia existir sem esta banda sonora. Poucas são as palavras da narrativa, mais necessárias parecem ser as expressões e os olhares.  E o texto da composição  invocada em todo o filme, Song For The Unification of Europe, cantado por um coro grego, trata-se da transcrição de um documento bíblico, que aliado aos instrumentos anteriormente decididos integrar a orquestra (o pormenor da decisão da flauta, ...), preza sobremaneira a promessa de se ultrapassar a enunciação da desistência pela integração do Poema ao Amor (*), versando-O como última salvação. Reconstitui-se a música como se a vida fosse recuperar-se também. No final, antecipa-se um Sol ainda verde que levemente se levanta. É uma súbita esperança onde intuimos que poderão nascer outros sonhos dali. Afinal, encontrara-se o lugar certo para estar. Este azul, além de uma faixa da revolução, é mais um rio que leva ao mar. 


(*) “Ainda que eu falasse as línguas dos homens e dos anjos, e não tivesse Amor, seria como o metal que soa ou como o sino que tine. E ainda que tivesse o dom da profecia, e conhecesse todos os mistérios e toda a ciência, e ainda que tivesse toda a fé, de maneira tal que transportasse os montes, e não tivesse Amor, nada seria. E ainda que distribuísse toda a minha fortuna para sustento dos pobres, e ainda que entregasse o meu corpo para ser queimado, se não tivesse Amor, nada disso me aproveitaria. O Amor é paciente, é benigno; o Amor não é invejoso, não trata com leviandade, não se ensoberbece, não se porta com indecência, não busca os seus interesses, não se irrita, não suspeita mal, não folga com a injustiça, mas folga com a verdade. Tudo tolera, tudo crê, tudo espera e tudo suporta. O Amor nunca falha. Havendo profecias, serão aniquiladas; havendo línguas, cessarão; havendo ciência, desaparecerá; porque, em parte conhecemos, e em parte profetizamos; mas quando vier o que é perfeito, então o que é em parte será aniquilado. Quando eu era menino, falava como menino, sentia como menino, discorria como menino, mas, logo que cheguei a ser homem, acabei com as coisas de menino. Porque agora vemos por espelho em enigma, mas então veremos face a face; agora conheço em parte, mas então conhecerei como também sou conhecido. Agora, pois, permanecem a fé, a esperança e o amor, estes três; mas o maior destes é o Amor”

Excerto do Novo Testamento (Capítulo 13 da primeira Epístula aos Coríntios)

sexta-feira, 28 de junho de 2013

C i b e l l e

Há vozes que fazem músicas. Há timbres cuja presença é elegante e nos despertam uma atenção instantânea. E há palavras que ressoam como verdadeiras armadilhas. O ar sai dos pulmões com sentido musical numa lógica inevitável, cativante como o riso. Há vozes, assim, felizes. São muitas. Ouvimos uma vez e, tempos mais tarde, depois de milhares de outras coisas ouvidas, reconhecemo-las. São vozes que podiam não pertencer a nenhuma linguagem: vogais e consoantes desfilam nas passarelas das pautas, como se lhes pertencessem. Há vozes que são as próprias músicas. 

Cibelle Cavalli Bastos nasceu em São Paulo há 35 anos, trabalhou como actriz e modelo mas cedo se dedicou à música. O seu estilo situa-se algures entre a electrónica, Bossa Nova e o Neo-folk, sendo conhecida por representar um género “tropical punk”. Estreou-se em 1999 dando voz a 3 músicas enquanto vocalista do grupo Suba no álbum “São Paulo Confessions”, uma década depois participou no “Femina” do The Legendary Tiger Man, e entre várias outras colaborações já editou 3 álbuns. Além de multi-instrumentista, é produtora musical e dedica-se a outros projectos na arte performativa, plástica, etc. A dada altura decidiu adoptar o nome de Sonja Khalecallon vestindo a pele de uma cigana, seu alter-ego, pois revê-se enquanto sujeita itinerante cidadã do mundo e, especialmente pelo que se vive hoje no Brasil, usa as redes sociais de forma verdadeiramente activista em defesa das causas em que acredita. Cibelle não se importa com o que pensam dela. 

via palcoprincipal.sapo.pt
Em 2003, com apenas 25 anos, lança-se na europa com o álbum auto-intitulado “Cibelle” primando pela originalidade no seio da música brasileira, apesar de seguir a linha de Bebel Gilberto partilhando, com esta, a mesma companhia discográfica belga (Crammed Music).  Inova a versão de Jobim com Inútil Paisagem e já erradicada em Londres confessa-se paulista nas suas versões de Só Sei Viver no Samba e Um Só Segundo.  

Em 2006 sai “The Shine of Dried Electric Leaves” e a artista vanguardista, depois da sua passagem por Paris, demonstra dominar o francês e o inglês entre experimentalismos como neste tributo a Tom Waits em Green Grass e na criação de continuidades com bases mais jazzísticas em Flying High, sendo o tema remisturado por Yann Arnaud (Air). Mas é com Lembra que nos lembramos que lhe acresce o talento da construção de letras (esta escreveu com Mocky) intercalando-se português-inglês, como a Nina Miranda fazia nas Águas de Março (Joga Bossa Mix)  dos Smoke City e nos seus amores subaquáticos (em Underwater Love).


“There are times

When you wake up
And it all seems different
It was a dream
(...) the sky on the ground
And all that coldness
When your heart belongs elsewhere
Under the sun, on the top of the sand
And all around you is so wet
Everything is so wet
Everything is so wet
Under the sun, on the top of the sand
And all you wanna hear is a bird call
All you want is a bird call
Só um bem-te-vi (just a bird)

Slowly

Walking through the fields
Empty heartbeat
Follow someone

Deixa pra lá


Rollercoasters in the thin rain

Now in my rainy mind
Stories slide insane
Slide insane
Slightly most, leaves under my feet
I feel my skin, it's so cold out here

Deixa pra trás


Lembra, lembra, lembra


Que venham as flores e as águas de Yemanjá

Vem no vento, vem no vento
Pensa na beira do mar
Vem no vento, vem no vento
Pensa na beira do mar
Vem no vento, vem no vento
Pensa na beira do mar

Me deixa chegar

Me deixa chegar
Me deixa chegar

Que venham as flores e o cheiro de mar

Que venham as flores e o cheiro de mar
Vem no vento, vem no vento
Pensa na beira do mar

Lembra, lembra, lembra, lembra”


Em 2008 é editado o EP White Hair, mais uma prova da qualidade desta compositora. “Las Venus Resort Palace Hotel” sai em 2010 e é quando Cibelle veste a pele de Sonja na banda Los Stroboscopious Luminous actuando no último cabaré que resiste antes do mundo acabar. Sonja traz-nos Underneath the Mango Tree num registo mais arrojado e exótico em consonância com o espírito do álbum mas é Sad Piano que parece pacificá-la personificando o estado de alma no instrumento. O piano está triste e ela, Cibelle, despida da Belle Époque, não se importa com o que sobre si se pensa ou diz porque há vozes que fazem músicas mas temos de nos calar para as ouvir. 


quinta-feira, 27 de junho de 2013

The Power of The Scream

Foi Edvard Munch que me levou a Oslo porque cresci curiosa com O Grito


Não era a ilustração da angústia que eu queria ver. Nunca foi. Era aquela produção que prevalece no tempo, cores irrepetíveis e verbos que vão muito além da tinta: um olhar frontal que não é humano e não é inumano, é O Grito. Os pintores comunicam através das obras, muito mais ao vivo do que nas imagens dos livros ou das que abundam no ciberespaço. E, na verdade, eu quis ouvir o quadro. A tela há 120 anos podia pretender ivocar morte como muitos defendem, mas foi Sebastian Cosor quem deu vida ao quadro, retirando O Grito da perpétua imobilidade malfadada por Munch. Na animação, o momento chega a ser cómico (e mais ainda na versão de inverno):



A música The Great Gig In The Sky dos Pink Floyd foi soberbamente escolhida para acompanhar o vídeo. O diálogo, parte integrante do tema, é sobre morte e respectiva aceitação: 

"And I am not frightened of dying, any time will do, 
I don't mind. Why should I be frightened of dying?
There's no reason for it, you've gotta go sometime."
"I never said I was frightened of dying."

Na versão original é Clare Torry quem causa arrepios e tudo isso sem dizer uma única palavra porque é também esse o poder que o grito contém. Quando os Pink Floyd, na pessoa de Alan Parsons, convidaram esta mulher para ensaiar a música, ela não sabia o que fazer, pediram-lhe que improvizasse e ela começou por evocar alguns “Oh yeah baby” rapidamente recusados por  Richard Wright. Depois de se familiarizar com a versão instrumental da composição, teve a ideia de utilizar a sua voz como se se tratasse de mais um instrumento e o resultado foi estonteante. Torry chegou a ter algumas participações ao vivo tendo sido a primeira a 4 de Novembro de 1973 num concerto de beneficiência para Robert Wyatt (baterista dos Soft Machine) no Rainbow Theater (Londres), e, posteriormente, outras como esta, em 1987, na Wembley Arena (Middlesex, Inglaterra):

Se não houvesse os vocais femininos a compor esta canção o resultado seria uma fórmula incompleta, cuja versão despojada de voz nunca poderiamos comparar:


Em 2004, Torry processou os Pink Floyd e ganhou o caso, adquirindo direitos na autoria da letra. Mas The Great Gig In The Sky continuou a ser tocado ao vivo com resultados espantosos, como as covers de Bianca Antoinette entre muitas interpretações de diferentes cantoras. Mas vale a pena (re)abrir o palco do Royal Albert Hall (Londres), para (re)ver Ola Bieńkowska usar os seus vocais:



No entanto, há mais por vir. Damian Darlington criou o Brit Floyd - The World´s Greatest Pink Floyd Show  para comemorar o lançamento do best of da mítica banda britânica, intitulado "A Foot In The Door", espectáculo esse que passará também por Lisboa e Porto nos dias 13 e 14 de Dezembro, respectivamente. The Great Gig In The Sky faz parte do alinhamento. 

Existem livros/guias que recomendam um determinado número de locais para visitarmos antes de morrer. Cada um de nós terá os seus lugares de eleição. Eu penso acrescentar à minha lista um destes recintos, em dia de concerto, repleto de gente, onde acredito poder realmente ouvir O Grito porque, afinal, já fui mais longe.

domingo, 23 de junho de 2013

N y c t a l g i a

Em Nyctalgia não há muito para ver mas é imprescindível reparar. Dentro dos géneros ambiente, pós-rock e shoegazing, todas as operações são reguladas por um único elemento, Silvio Pfiffner. Com raras habilidades para, a solo, pôr em marcha composições optimizadas por recurso a guitarra, baixo, piano e bateria, o resultado é uma experiência bem trabalhada que se divide em configurações funcionais para ouvir enquanto nos podemos ocupar de outras tarefas. Traduzindo à letra, tratar-se-ia de uma patologia associada à dor que apenas se sente à noite e nas 6 faixas originais nenhuma é isenta de mensagens sentimentais sem que necessariamente nos sejam induzidas disposições mais macambúzias. 

O projecto terá tido início algures por 2007 e com alguma falta de dinheiro para gravar em estúdio, este músico amador, natural da Suíça, ainda com 23 anos continua atrás de uma companhia discográfica que o represente. Em 2009 lançava “Time Changed Everything...”, uma demo limitada a 150 cópias com apenas 5 faixas, de onde se extrai este Mira...


Tema assombrosamente edificado com uma poesia vocalizada bem sustentada pela globalidade da composição que se vislumbra muito bela no seu conjunto. A letra foi divulgada com múltiplas reacções de apoio na página do facebook dedicada pelo autor a este projecto: 

"I still live in the dream we shared,
I sail the sea where our souls always fell
asleep.

Where are you now? I still need you!
Awash in a whirl of memories, I beg
but you just turn
away...

In the deep night my heart still weeps,
haunted by the blue eyes
that once smiled
at me alone.

Only pain remains of our love...
a world a loving year created...
In a single second you destroyed my world.
Now my dreams are gone...
and the door is closed forever.
The first tear cast me into nothingness.

And yet your voice whispers to me still
a hopeless song of love."

Podemos também ouvir os sons do mundo deixando-nos ir pela mão de Pfeiffner. Em Time Changed Everything... a experiência é bem conseguida através dos intervalos do piano mantendo-se presente o ruído da chuva e trovoadas como pano de fundo, terminando apenas com as vagas do mar somadas ao silêncio e adivinhamos que está de noite. Em Ort Der Toten Namen a chuva aparece sob a forma de biombo inicial mas é o choro humano que acompanha a maioria do segmento musical. Por outro lado, o riso de crianças surge na parte final de Falling Into Nothingness, e Remains of a Blue Rose, apesar de soturna, antecipa uma espécie de alvorada que, na verdade, nunca chegamos a acolher ao longo do álbum. Em Coming Home há cânticos que evocam mitos de deuses e paraísos por descobrir, que a vibração do piano não pretende esconder mas um quarto da música é composto somente pelos coros e pelo vento para melhor ouvirmos o apelo do natureza nesse extracto de som. A primeira faixa com o nome do projecto, Nyctalgia, oferece uma estrutura mais sólida, mais amadurecida onde os vocais arrastados ecoam celestialmente e as restantes músicas parecem servir-lhe de atalho.

Em 2010 sai um majestoso single “Lost in Timeless Horizons”, perante o qual custa a acreditar tratar-se de obra de uma só pessoa. Indelevelmente associado a outras sonoridades como God Is an Astronaut, Sigúr Rós, Rachel’s, entre outros, em Lost in Timeless Horizons, Nyctalgia compõe um hino: 


No início de 2013, Pfeiffner revelou, através do Facebook, a sua participação num novo projecto intitulado Krane algo diferente de Nyctalgia, contando com mais 3 elementos conterrâneos de Basel e tudo indica que tenha desistido dos trabalhos a solo. Na passada sexta-feira os Krane anunciaram o término das gravações pelo que se adivinha que o primeiro álbum deverá sair em breve. 

Como a capacidade de criar momentos épicos não é para qualquer um, e, não sabendo o que o futuro reserva, vale a pena desfrutar desta meia-dúzia de ovos de ouro porque o tempo, esse, muda tudo.

sábado, 22 de junho de 2013

H a m m o c k

Em português denominam-se “rede de descanso” e a ideia condiz com a atmosfera repousante dos temas. Não aparecem nos circuitos mais comerciais e, no entanto, são especiais na qualidade e quantidade de experiências e improvisos de estúdio.

Formada pelos guitarristas Marc Byrd e Andrew Thompson, originários de Nashville (conhecida como a “Cidade da Música” no Tennessee), a banda edita o primeiro álbum “Kenotic” em 2005 com composições instrumentais suaves e equilibradas que confluem no género experimental e ambiente, dentro da nova era do shoegazing revelando ainda assim uma identidade própria. Descrevem as suas músicas sob a influência das infindáveis paisagens do sul rural americano. Parecem simples mas são complexas em cada registo denotando mestria na revisão sónica e no uso de sintetizadores. Cada faixa de “Kenotic” parece tratar-se de um único som anguloso que se deixa expandir com pequeníssimas variações de frequência. Apesar de, neste álbum, não existirem grandes diferenças rítmicas com a excepção do tema Wish, o duo revela a capacidade de fazer transparecer em temas maioritariamente instrumentais os seus próprios títulos, como em Blankets of Night 




através de ruídos nocturnos introduzidos em jeito de antecâmara e em Overcast/Sorrow, onde a música flui na mesma vastidão do céu e onde os violinos incluem certa melancolia, como encontramos em William Basinski, Harold Budd ou Brian Eno. Genericamente, as distorções são uma nebulosa uniforme e vasta num ambiente calmante.

Em 2006 lançam “Raising Your Voice… Trying to Stop an Echo”, no mesmo registo do anterior trabalho, contando esporadicamente com a participação da voz de Christine Glass Byrd em combinação etérea e na mesma fluidez da guitarra que parece expandir-se indefinidamente como em I Can Almost See You, tratando-se de um novo hino à beleza. Em The House Where We Grew Up sente-se uma serena alegria intemporal e bem podia encontrar-se uma guitarra acordada dos Smashing Pumpkins desde que fosse apenas um dos elementos constituintes dentro da escultura de som criada pelos Hammock. Em Take a Drink from My Hands, andamos de estrela em estrela pisando um espaço etéreo onde contemplamos uma nova dimensão de relaxamento embora possamos recordar os Boards of Canada na mesma atmosfera espacial. Inovam com as suaves batidas de tambor em Disappear Like the Morning e com o violoncelo de Matt Slocum quebrando ligeiramente a atmosfera nublosa e exaustivamente uniforme do álbum. Um trabalho sublime que merece ser ouvido muitas vezes sem o risco de cansar.

No ano 2007, são convidados pelo duo Jónsi & Alex para se estrearem ao vivo em colaboração com estes aquando da apresentação de “Riceboy Sleeps”. E em 2008, sai “Maybe They Will Sing for Us Tomorrow” onde as comparações são evidentes e é tempo de introspecção. Continuamos a vaguear no espaço numa linha contínua na qual se sente menos o peso das distorções. De faixa em faixa somos capazes de auscultar apenas ligeiríssimas variações de som. Mono no Aware é uma amostra:




Em “Chasing After Shadows... Living with the Ghosts” de 2010, a assinatura é evidente, persiste a intenção de coerência, no entanto, a percussão apresenta-se mais presente nas peças e a guitarra é dedilhada em Breathturn e No Agenda Instrumental. As interjeições encostadas sem palavras aproximam deste duo outras bandas como, é exemplo, os God Is an Astronaut. In the Nothing of the Night revela a recorrência aos violinos mas talvez esta faixa seja demasiado longa e The World We Knew As Children poderia ser o cartão de visita dos Hammock com tudo o que têm de melhor: 




Com “Departure Songs” em 2012, a sonoridade e o horizonte mantêm-se expansivos. Continuamos a ser embalados num ambiente um pouco artificial onde nos permitimos flutuar porque cada nota faz sentido. Podemos associar sempre um misto de sentimentos antagónicos quando estamos perante os Hammock, e, apesar de os próprios títulos normalmente indicarem uma direcção mais sombria, podemos escolher o que sentir, no mesmo tecido fluido do austríaco Christian Fennesz ou do texano Brian McBride (Stars of the Lid) onde um gigante novelo de som se desenrola vagarosamente e flutua no ar, fugindo no horizonte. Em Cold Front a tristeza não nos contamina porque a música é cristalina e credível sendo uma composição igualmente transcendente mas muito menos negra que outros trabalhos instrumentais como o dos Godspeed You! Black Emperor. Em geral, ao longo do duplo álbum, as faixas estão mais contrabalançadas e os temas mais longos ganham harmonia de conjunto. Podemos sentir-nos menos à deriva do que em anteriores trabalhos. 


Aguardemos por “Oblivion Hymns” com lançamento previsto para Outubro, sem verdadeiramente pedir que nos surpreendam. Talvez fosse mais fácil inovar a receita com uma sonoridade mais intrusiva mas esta não é uma banda para se ouvir a correr. Os Hammock são uma rede de som tecida com fio-trama de seda e fio-teia de nuvem, leve mas consistente, onde nos podemos deitar para sonhar.

quinta-feira, 20 de junho de 2013

Andrew Thomas Huang + Islândia = resultado mais-que-perfeito

Se alguém perdeu o Solipsist de A. T. Huang deve parar para prestar alguma atenção a este realizador e aproveitar para continuar a brincar na areia através da Björk no vídeo oficial de Mutual Core:


Não sabemos bem se estamos debaixo de água. Às vezes parece que sim. Ela confessa misturar areias e placas tectónicas em si mesma, combinar continentes e ainda assistir à erupção que desfaz a estagnação terrestre. A combinação é perfeita: Björk trouxe o amor em “Biophilia” cantando as transformações da estrutura da terra tratando-se de uma metáfora em alusão às relações humanas e, Huang, com a experiência de tentar gravar a dúvida e captar o momento presente, motivado pela perspectiva filosófica do Solipsismo, cria um segundo cenário encantatório que parece derivar dessa mesma corrente. A cantautora semi-enterrada na areia assiste às rochas a ganhar vida. A harmonia pastel do cenário em movimento contrasta com a cabeleira azul de Björk e com o vestido dourado e seus apontamentos de pedra bordada lembrando que ela é o centro de tudo porque tudo parece possível e é possível que ali tudo aconteça. 

Mais recentemente, chegou a vez dos Sigur Rós serem retratados pelas câmaras de Huang:


Com o lançamento de “Kveikur é noite em Brennisteinn: Há redes de fitas inextricáveis e corpos que são arrastados de correntes negras de lava. Pode ser um resgate mas estas criaturas bem podiam ter saído das grutas d’A Descida de Neil Marshall num ambiente constante de falta de luz. A atmosfera é mais densa do que aquela a que nos habituáramos mas nem tudo é negro, há chamas que ardem altas e cordas douradas pelo fogo que se entrevêem a amarelo-limão. As fitas rompem-se ao som do tradicional arco nas cordas da guitarra de Jónsi. E irrompe das fitas um animal estático que cai vagarosamente. A música abranda na sua metade mas rapidamente adquire novo balanço. Descobrimos afinal um corpo saído da lava composto de papel e fumo. O mesmo fumo verde sai da boca de Jónsi e durante um longo momento assistimos ao seu perfil, depois os outros membros da banda aparecem igualmente contaminados. O fumo invadiu mais corpos, inundou o espaço e persegue os seres que se afastam. A lua sobe e é tempo de transformação porque com este álbum algo nos Sigur Rós mudou mas eles haviam avisado que assim iria ser. O trabalho de Andrew Huang é bem diferente dos vídeos das sessões experimentais (que estiveram a concurso) no anterior "Valtari" e, naturalmente, terá tido outro budjet. Depois desta pequena apresentação resta-nos esperar pelos próximos trabalhos do artista porque a música também se sente com os olhos.  

quarta-feira, 19 de junho de 2013

V a l t a r i


Quando terminei, percebi que tinha pintado um álbum.

Valtari
Acrílico s/tela
(50 x 50) cm
02/2013



terça-feira, 18 de junho de 2013

B a l m o r h e a

Não é muito provável uma pequena cidade do Texas intitular uma banda de rock, não fossem os seus membros originários da vizinha Austin, à distância de seis horas de território americano. A banda foi formada em 2006 por Rob Lowe e Michael Muller e no final de 2012 contabilizavam 5 álbuns originais e mais 4 elementos. Detentores de influências várias, sobretudo reminescências da folk a par do magistral estilo clássico, revelam-se na calha de nomes tão díspares como Max Richter, John Cage, Morrisey, Yann Tiersen, Arvo Pärt, Ludovico Enaudi, Beethoven, entre muitos outros.

via Magnet Magazine

A captação de sons e tentativa de controlo sobre estes é uma investida poética no campo da improvisação estruturada. Intimistas, estes norte-americanos, primam pelo recurso a uma mescla de instrumentos de cordas, desde o banjo ao violoncelo aliando a percussão apenas para garantir a compleição ritmada das construções tocadas. Por vezes, a voz eleva-se à laia de um adicional instrumento novo sem intenções de distração mas como complemento da própria linguagem de colcheias desprovida de narrativa. Existe uma harmonia de partitura,  óptimista e de rara beleza. 

Em 2007 editam o primeiro álbum com o mesmo nome donde se extrai este A Circumnavigation no qual se respira ar de montanha na harmonia das flutuações musicais, com um horizonte de chuva que não abandona o cenário bucólico característico. Uma comunhão onírica onde a natureza para coexistir sem necessidades supérfulas para lá do experimental. Outros elementos podem aguçar as baladas: há bichos notívagos, ou uma máquina de escrever frenética como em In the Romans e, em Baleen Morning, abrimos a janela a um novo dia e desejamos não esgotar os 3 minutos e meio de sol que se sente num magnífico crescendo a consumir-se apenas na última nota. No ano seguinte, lançam "River Arms" mais pontilhado de violinos e teclados onde as baladas surgem mais intempestivas como em The Winter. Existe mais movimento e pode reconhecer-se a passagem de comboios em lugar da natureza, como em Greyish Tapering Ash.

Em 2009, a confiança aumenta e surpreendem com "All Is Wild, All Is Silent" podendo mesmo apanhar desprevenidos aqueles que os julgaram arrumados em prateleiras sujas de pó, pois irrompem com uma efervescência revigorante, distanciando-se do som pastorício originário. Em Harm and Boon reconhece-se que o dueto se expandira o que é notório nas novas proporções experienciadas atingido-se ritmos não antes ousados. Em Remembrance, voltam a revisitar as mesmas paisagens texanas que inspiraram Ry Cooder e Ennio Morricone mas quebram a linha original com o culminar numa frequência mais austera e vibrante em coerência com o sangue novo do álbum.


Em geral, existem mais guitarras a conferir textura e, paradoxalmente, a natureza antevê-se através de chants tribais que, nas mesmas montanhas, fazem redescobrir os Sacred Spirit da década de 90 ainda que em muito baixo tempero. Em November 1, 1832 dá-se um momento magnífico do álbum onde o convidado Jesy Fortino interpreta com concisos vocais a magia intraduzível da faixa.

Se dúvidas havia, em 2010 regressam com "Constellations" para comprovar a sua maturidade no género alternativo e pós-rock. O resultado é brilhante em Bowsprit conservando-se as amplitudes de frequência do albúm anterior mas já sem efeitos surpresa, apesar da heterogenia sonora. E, até um dado momento, são inevitáveis as comparações aos Sigur Rós em Palestrina, mas a autenticidade da banda assume-se fazendo repensar as semelhanças e desviando a pseudo-ligação. Em Night Squall podemos deixar-nos embalar na certeza do regresso. O piano apresenta-se mais apetecível e é recorrente em todo o álbum mas especialmente em The Order of the Night e em Winter Circle onde, apesar da atmosfera melancólica, um coro de vozes soa pouco menos que perfeito. Num disco tão capaz não faltou também um apontamento jazístico (On The Weight of Night) para enaltecer ainda mais o ambiente geral. Em suma: um trabalho difícil de deixar de ouvir. A promessa de 2006 reaparece em 2012 com o álbum "Stranger". Ainda estou a experimentá-lo. Soa mais electrónico mas não se perde da trilha indie/instrumental. Sigo e deixo-vos Pyrakantha para absorção lenta. Há digestões que merecem o seu tempo.


segunda-feira, 17 de junho de 2013

Da Islândia com Amor

Foi a Björk que me levou à Islândia. Foi através dela que descobri os Sigur Rós, depois as Amiina, os GusGus, os Múm, os Seabear, os projectos a solo do Jónsi, da Sóley, da Emilíana Torrini, entre outros. Acompanho estes talentos há muitos anos e nunca me desiludiram. 

Gosto de revisitar a Emiliana numa das mais felizes faixas que conheço para traduzir e endereçar o “estar-se feliz”, o que ali acontece e convence entre borboletas, sorrisos, dança, e muita alegria, contagiando e inspirando outros (assim):



Mais exemplos do que não deve passar despercebido: a ousadia dos GusGus em Dominique que, apesar de pertencer a um álbum de 1999, bem poderia ser uma versão mais cristalina e adaptada aos tempos modernos do I am what I am da Gloria Gaynor. O absolutamente emotivo Fjarskanistan das Amiina onde os xilofones ditam o compasso da vaga balada de fundo, também a mesma banda em Over and Again numa espécie de brincadeira de meninas onde as vozes se misturam num cenário igualmente etéreo. Ou ainda no mesmo registo, os Múm com o mítico Green Grass of Tunnel:


que descobri na banda sonora do "Screaming Masterpiece", um documentário de 2005 sobre a música popular islandesa, a par da faixa mais arriscada em termos de movimento We have a Map of the Piano que também merece uma nota, transportando-nos para uma janela de comboio onde as paisagens se sucedem e, simultanemante, embalam fazendo-nos fechar os olhos e imaginar. Mais recentemente, os Of Monsters and Men vieram provar que a terra contínua fértil e capaz de produzir do gelo bandas de inquestionável qualidade. 



A música já de si um fenómeno potencialmente enebriante tem pela área da Islândia uma dimensão paralela ainda mais elevada, quase mística. Outro exemplo são certamente as composições impressionistas de Jóhann Jóhannsson. É invariável a aproximação filosófica no entoar dos ritmos islandeses. Na maioria destes projectos pode reconhecer-se com frequência o recurso a um grande número de instrumentos. Existe a combinação da orquestra clássica com a música electrónica e o resultado é uma esplendorosa surpresa minimalista traduzida através de tecido musical. 

São bandas delicadas mas, coloco na linha da frente os Sigur Rós porque inventaram inclusivé um dialecto próprio "Volenska" para exprimir a linguagem dos sentimentos no álbum “()”. A dificuldade é escolher uma só faixa destes senhores porque trago-as todas na algibeira das minhas preferências. A fechar, fica o belíssimo Tornado do Jónsi porque representa explosão, crescimento e revolução humana como só o Amor pode. Se tudo isto não é suficiente para colocar Reykjavík na lista das capitais a não perder, pode também levar-se a ideia de encontrar algumas das mais belas paisagens do planeta. E eu hei-de lá ir um dia pôr as mãos naquela terra fria para desenterrar varinhas de condão. 

domingo, 16 de junho de 2013

Virus



"It's a kind of a love story between a virus and a cell. And of course the virus loves the cell so much that it destroys it." disse a Björk sobre esta canção do (seu) Biophilia.

E a propósito, lembrei-me de uma preciosidade da autoria de Sarah Masherette, em jeito de Mashup (interessante combinação de músicas de autores distintos com resultados muitas vezes surpreendentes). Vejam este Virus a contaminar positivamente um trabalho de James Morrison.

Tenho andado com esta música

Não me acontece com frequência entrarem-me a bordo estes registos. Contudo, neste caso, eu e a minha música round and around and around and around we go. Fui pesquisar as covers e em acústico não é dificíl encontrar alternativas deleitantes. Invariavelmente gosto mais de palavras celebradas fora da Rádio, com a excepção da Radar que sigo na primeira fila. Mas desta vez fui apanhada, talvez porque quando se está apaixonado haja qualquer coisa extra a sarapintar o horizonte, parece-me uma noção dual para o ouvido: mais disponível, menos selectivo. E, a ser assim, é boa a experiência porque deixa-me imbuída da sensação de gostar mais das coisas e da minha própria disposição. Obrigada a ti, R. I want you to Stay.

PS - O R não é de Rihanna (mas, hoje, até pode ser).

sábado, 15 de junho de 2013

A v e n t a r

Achei por bem o primeiro post datar de um ano pós-blog. Aventar porque hoje apetece-me atirar palavras ao ar e deixar que o vento as limpe. Arejar ideias e, também, expô-las à vista. Vamos ver amanhã como corre.

O sentido do tempo


O mundo é a aresta de um quadro vivo
dependendo do horizonte.
Vejo nuvens que arrastam levemente os céus
e verdura espalhada ao acaso.
As casas descansam de janelas abertas:
O branco caiado
Os telhados desencontrados
Telhas-caminho de gatos
Gatos que passam devagar
E param
E olham
E permanecem.

Mais tarde, o vento visitará solitário a noite
Cruzam-se carros e estradas,
Afinando levemente o silêncio da vila

É tarde.
É tarde e é quase cedo também.
As nuvens começam a desaparecer,
consumidas por um manto negro,
seguro por botões de estrelas
Amanhã tudo voltará a ser hoje.
Porque amanhã já é hoje.
O manto desapareceu.
Os bichos da noite calaram-se.
As casas sobraram no mesmo lugar.

E que lugar era aquele onde achávamos ser o princípio?
Que lugar era aquele que parecia ter tempo e não tinha?

Ontem na mesma as nuvens corriam.
O vento despertava as folhas das árvores
crescidas no monte.
E afinal o mundo acordado
desde muito antes de nós.

As nuvens todas de acordo no sentido direito do tempo
lembrando-me o mar.
Jamais em sentido diferente.

Sempre todos os tamanhos das nuvens
Suspensos em fios de azul.
E, de vez em quando, chocando-se.
De vez em quando, a chuva a dar vida à terra.
E a terra a beber dos céus
lembrando-me os rios,
caminhando para o mar.
O ponto da foz.
Jamais em sentido diferente.

Lembrando-me o sangue
bombeado da aorta,
a caminho de tudo dentro de nós.
Jamais em sentido diferente.

O coração.
Primeiro.
Sempre primeiro o coração.
E são os olhos que  vêem.
As mãos sentem o que fazem
E mesmo que só a voz dos pássaros me chegue,
não importa o quanto eu cheire a paisagem
porque o coração
primeiro
a enviar-me o sangue
a todos os sentidos.

Castelo de Vide, 27 de março de 2013