quinta-feira, 31 de outubro de 2013

Putos a Roubar Maçãs

Há coisas que não têm maldade nenhuma. Já falei de o facto de se dizer «coisas» não trazer maldade nenhuma e outras há. Muitas mais. Tantas iguais inocências. O mundo é em tudo um tanto. Por exemplo, vou a caminhar descalça na praia e o mundo são inúmeros grãos. Ou, um búzio encostado ao meu ouvido, olho em frente e o mundo todo é o mar. O banquinho de madeira, vazio, e não é possível saber quantas pessoas já ali se sentaram. O mundo é todo esse passado de tempo e de gente. Mas já é tarde. Arrumo as minhas coisas. Deixo quase tudo para trás. Ouço o apito do comboio e dali a minutos sei que o mundo será uma sucessão de paisagens. Rápidas, muito rápidas. Tenho a mochila cheia de memórias. Cada peça uma história, com uma textura e um cheiro. Levo roupa para o frio, porque nunca se sabe. Ora faz calor, ora a noite vem ferozmente apertar-me os ossos, fazendo-me curvar. O mundo um tanto de poderes fortes. E a seguir vou mais longe. Aperto o cinto, vai daí aquele esforço inclinado no momento de levantar e o mundo é um tecto visto de cima com copas, telhados, uma geometria de caminhos, e até o mar de repente em silêncio: só uma página azul. Distante, muito distante. E nisto descalço-me e sinto areia entre os dedos dos pés. Apesar dos banhos que tomei. O mundo preso a nós. E agora vou estar aqui até aterrar. Tenho é vontade de comer qualquer coisa fresca. Vontade de subir a uma árvore. De ser criança e poder fazer o que nunca fiz. Vontade de ser ainda mais feliz. Como putos a roubar maçãs. 

segunda-feira, 21 de outubro de 2013

Pausa (Número Cinco) para Publicidade

Como vender uma cidade vazia:



e se eu (só) quiser a música?


sábado, 19 de outubro de 2013

Time Flies (vs. Kinetic Sculptures)

A propósito dos últimos posts relacionados com a Holanda e, lembrando-me da maravilhosa obra de Theo Jansen (também ele natural de Scheveningen, Haia, onde fotografei o arco-íris e a face esculpida de Igor Mitoraj), trago agora as esculturas cinéticas tridimensionais de Anthony Howe que merecem a máxima atenção. 



Por exemplo, esta face cinética atravessada pelo vento parece ter sido esculpida em simbiose com a natureza, como se os cem pequenos painéis de metal, movidos independentemente, lhe impregnassem vida, através das expressões que, conjuntamente, se conseguem visualizar. Esta semana o colectivo The Creators Project deu visibilidade a outras estruturas de Howe. 


No anterior vídeo são prestados - por este artista - alguns esclarecimentos relacionados com a sua inspiração para a realização do trabalho hipnótico. Tendo iniciado o seu ofício na pintura, Howe revelara-se "entediado com tudo o que estava estático no mundo visual, que queria ver a fluir". Pelo que decidiu desenvolver os seus projectos em 3D, através de programas de animação, dando uso ao material de que dispunha por meio de maquinaria integrada de corte em metal curvado. Como resultado, criou as esculturas cinéticas eólicas. E há mais peças a seguir, ao som de Erik Satie:



Agora, depois de décadas de trabalho, Howe revela que tem planos para criar a maior escultura cinética em todo o mundo (com cerca de 25 metros de altura) mas até lá a competição intensifica-se e a tecnologia caminha a passos largos porque a luz e a cinética já andam de mãos dadas a puxar por um futuro que se espreita cada vez mais próximo. Os inventores são os WHITEvoid e o vídeo Kinetic Lights DMX é uma amostra do que já não se pode perder. 




E embora o horizonte tenha muito mais artifício, a luz vem de trás: afinal, tudo começou quando friccionamos as duas pedrinhas... mas o tempo voa.

quinta-feira, 17 de outubro de 2013

Smile

Sobre as evidências que expressamos no rosto, serão essas da responsabilidade do Sol, poderemos atribuir-lhe (ou à temperatura) a não constância dos nossos humores? Será culpa do andar da vida, do não andar, ou do achar que a vida não anda? Será um dever político, «daqueles do governo» comporem-nos os problemas ao ponto de um conforto de poltrona? Poderá tratar-se de um encargo externo, algo a empurrar-nos os músculos para o lado que mais nos convém, ou não convém, ou que achamos que nunca nos há-de convir? Se calhar também respiramos porque à nascença nos implantam um micro-circuito qualquer que nos permite estar vivos. Ou, porventura, somos só nós que somos donos de nós próprios. Convém esta liberdade de sabermos que estamos entregues a nós mesmos. E então podemos escolher determinar os nossos passos e esquecer as fugas infinitas que fazemos aos espelhos do presente. Mas também podemos ficar um pouco ali, em frente a nós, a aprender a gostar do que espelhamos. A ver como somos bonitos, ou, se muito modestos, a reparar como a natureza é sã e aplicada na sua função criadora. O nosso rosto diz muito sobre nós. Uma expressão é muitas vezes a ilustração de um sentimento. Não me importa a dimensão dos vincos, a parte em que os olhos ficam mais pequeninos, ou se as maças do rosto se elevam. Gosto mesmo é da expressão e de descobrir o sorriso. E há pessoas que sorriem sem moverem um milímetro de pele.

Thsuki-no-hikari by Igor Mitoraj,
nas dunas do Museum Beelden aan Zee, Den Haag
(c/ Panasonic DMC-G5)
Mas este blog é sobre música e eu nunca me esqueço disso. Gosto de falar sobre canções e, a propósito deste texto, todas as manhãs quando ouço o despertador, acordo com o Sol dentro de mim, nesta maneira particular de sorrir:

quarta-feira, 16 de outubro de 2013

Water From the Same Source

Já algum tempo que não falava sobre o arco, na verdade foi em Junho que aqui disse acerca dele, mas hoje de manhã em Scheveningen Boulevard voltou a surpreender-me. Demorei algum tempo a retirar a câmera da mochila. As cores perderam um pouco a intensidade. Detive-me a olhar em frente. Hesitei entre ficar expectante ou levá-lo comigo. Não conseguia apanhá-lo inteiro. Escapava-me o efeito completo devido à minha proximidade. Tirei duas meias-imagens. Esta é uma das duas.


Não sei se tocaria a areia. Talvez soerguesse lá de dentro um quase idêntico semi-elo, mas um pouco maior, abraçado pela terra. Não sei se dentro da areia as cores também nascem como vejo crescerem no ar. Não sei se o Sol se entranha dessa maneira. Não sei se a água se resgata por dentro do chão, mas aquela que chovia era a mesma do mar. Igualzinha à que choro quando me sinto muito viva. É uma água feita das cores que existem em nós. Porque tanto do que somos é água. O resto é uma ideia crepuscular. Com maior detalhe. Mas há-de nascer um dia um círculo. Contínuo. Que emerja da areia e se solte, primorosamente. Um arco inteiro. Perfeito. E eu hei-de ter a câmara pronta. 

sábado, 12 de outubro de 2013

Ninguém Durma

No dia 12 de Outubro de 1279, Nichiren Daishonin inscrevia o Dai-Gohonzon* e, 656 anos mais tarde, nascia Luciano Pavarotti. Contam-se hoje 78. Nessun Dorma (em português «Ninguém Durma») é a famosa ária, belíssima, composta por Puccini, que corresponde ao útimo acto da Ópera Turandot, que Pavarotti interpretou na sua última apresentação ao vivo, acontecida em 2006 por ocasião da abertura dos Jogos Olímpicos em Torino. Nesta anterior versão (1996) Pavarotti teve a companhia de vários outros artistas (Dolores O'Riordan, Bono Vox, Meat Loaf, etc.) num concerto de angariação de fundos, realizado em Modena, pelas crianças vítimas da guerra da Bósnia. E, de entre este grupo de amigos, é Michael Bolton quem em nome de Caláf, o príncipe desconhecido, termina magnificamente gritando que o pedido imperativo da princesa Turandot terá sido em vão, pois ninguém conseguirá descobrir o seu nome e ele vencerá.


O tenor italiano produzia anualmente estes concertos beneficentes intitulados "Pavarotti & Friends". Em 1980 esteve ao lado de James Brown, com This is a Man's World apelando na sua língua madre ao «L'uomo rincorre il potere» terminando a concordar que «se non si accorde che poi nulla ha più senso se si vive solo per sè solo per sè», onde parece dirigir-se aos homens que perseguem o poder: «Acordem, porque não faz sentido que estejam a viver só para vocês mesmos», no entanto, só em 2001 cantaria o Perfect Day com Lou Reed. O que é incontestável é que a música tem um poder imensurável, importantíssimo. E é através deste canal que personalidades gigantes tentaram, quiseram e continuarão a querer mudar o mundo para melhor. O ideal era que ninguém dormisse perante estes esforços.

Um outro dos muitos duetos improváveis relacionados com esta finalidade filantrópica criada por Pavarotti aconteceu em 2000 ao lado da Skin (Skunk Anansie), e desta vez os fundos foram direccionados para o Camboja e para o Tibete, através de You'll Follow Me Down cuja letra não foi escrita para dar sentido a este texto que agora escrevo. É claro que podemos relacionar tudo como quisermos. Eu até acho que tudo está ligado. É muito fácil (pelo menos para mim) abrir uma argola e encadear mais um elo à corrente. Espero que me sigam e que ninguém se deixe dormir. É meia-noite. A que horas será a noite inteira? O tal tempo de acordar. Vá, acordem... Pensem nos outros. Os outros também somos nós. Já temos a receita de Pavarotti. Há muitas mais. Vão ver que um coração cheio é a maior riqueza da vida. De certeza que já sentiram o sentido disto. Não me lembro de nada melhor do que tentar ser melhor que ontem. E (o meu pulso diz que) ainda não passou um minuto desde que o dia mudou. Não durmam, é tempo de ser feliz: Nam-myoho-renge-kyo


* Dai-Gohonzon é o objecto de devoção (no budismo de N. Daishonin) que serve para lembrar que o estado de budicidade (estado de felicidade extrema e inabalável) só pode ser encontrado dentro do coração de uma pessoa e não exteriormente, por isso, cada um deverá acreditar no poder da sua vida e para isso actuar em prol da paz mundial e da bem-querença de toda a humanidade.

sexta-feira, 11 de outubro de 2013

Pausa (Número Quatro) para Publicidade

Como vender um perfume:


e se eu (só) quiser a música?

I Was Trying to Sleep When Everyone Woke Up

O tempo passa e este rapaz continua a brincar aos instrumentos. Há quem prefira não levar a vida muito a sério porque a ela (à vida) tanto lhe faz como a vestimos todos os dias. O homem-orquestra (como lhe chamam) é David Santos, mais um engenheiro que derivou para as artes. E ninguém diga que o seu trabalho não é sério, porque neste caso é só a vida que se mantém animada. E este "só" é vasto. O seu projecto intitula-se Noiserv. Dentro da mesma sonoridade só me ocorrem as CocoRosie (de quem já falei aqui), por causa dos brinquedos que escolhem reunir ao improvisar a sua música, e as Amiina devido aos xilofones. Saiu há dias o novo disco "Almost Visible Orchestra" e I Was Trying to Sleep When Everyone Woke Up não surpreende nem destoa. Talvez por esta faixa falar sobre amizade, David fez-se acompanhar por um coro de amigos que convidou para cantar: Rita Redshoes, Luísa Sobral, Francisca Cortesão (Minta), Luís Nunes (Walter Benjamin), Afonso Cabral e Salvador Menezes (You Can't Win, Charlie Brown), entre outros. Uma década passou e algo mudou. Os instrumentos continuam a ser muitos mas Noiserv já não está tão solitário. Neste recreio disciplinado ninguém quer apagar a luz. Estes momentos de talento merecem atenção. Apetece ficar a ouvir. Aumentar o volume. Puxar o móbile. Encher a parede de luzes e pendurar sombras no tecto. Ver as bolinhas a passar. Empurrar o comboio na pista. Abrir a caixinha e fazer companhia à pequena bailarina que gira em cima do espelho. Dançar. Tenho a certeza que a noite há-de esticar-se provavelmente até de manhã. Se eu conjugar o verbo ouvir, acredito potencialmente num efeito contágio: «You should fell like us.» Eu bem sei que é tarde mas também eu tentava dormir quando toda a gente acordou.

quarta-feira, 9 de outubro de 2013

Pausa (Número Três) para Publicidade

Como vender um sumo:


e se eu (só) quiser a música?



terça-feira, 8 de outubro de 2013

Coisas

Uma das palavras mais usadas para dizer tudo sempre que não ocorre nenhuma mais acertada. Uma palavra polivalente e, desta feita, o mesmo acontece ao verbo coisar. Portanto, não é incorrecto eu dizer que coiso e aconteço. Tu também coisas e você que me lê, mais tarde ou mais cedo, há-de vir a coisar. Podemos continuar esta conversa coisa e tal. Aliás, o acordo ortográfico não coisou esta palavra. Confirmei no dicionário. Não havia nada a mudar nela e ficou como estava, ilesa a retoques. Nada se lhe retirou ou acrescentou. Mas digamos que me custa um coiso falar desta maneira redundante das coisas em geral. Mesmo a itálico, sei lá, fico coisa de omitir o nome mais justo atribuído a todas as coisas e a cada coisa em particular. Só o facto de pensar nestas coisinhas faz-me perceber que deixa de ser preciso raciocinar aquele tempo. O necessário para conceber idealmente o meu discurso. Encher o pensamento livre de palavras e caçar aquela mais ajustada à ideia. E isso é uma coisa que gosto muito de fazer. Entretanto, já passei de uma dúzia de utilizações. Que palavra tão gasta. Não gosto da falta de brilho inerente à repetição, e satisfaz-me ter o trabalho de decidir-me por outras. Mas até as palavras são coisas. Catorze vezes. São só coisas. Quinze. E eu tenho coisas mais importantes para fazer do que ficar aqui a contar. 



domingo, 6 de outubro de 2013

D a u g h t e r

Raízes: 2010, Londres. Folhagens: 2013, Mundo. 

Elena Tonra trabalhava a solo, ou antes, criava a sua música. Filha de mãe italiana e pai irlandês, aos treze anos recebeu um álbum de Jeff Buckley oferecido pelo pai, sentindo esse o momento em que percebeu o que era a música. Desde cedo dedicada à escrita de poemas por se sentir solitária e inadaptada, mais tarde, é por meio da guitarra do irmão mais velho que decide transformá-las em canções, de cariz melancólico, iniciando o seu caminho como cantautora. Faltavam Igor e Remi, mas a banda acabou por se cruzar no Institute of Contemporary Music Performance e o trio conta agora com três anos de percurso. Quando conheceu Igor Haefeli na escola de música, e este se dispôs a tocar guitarra com ela nas actuações ao vivo, percebeu que os estilos se conjugavam e decidiu expandir a sua música. Nessa altura, o que começou por ser uma favor de um colega, rapidamente se tornou numa banda, mais tarde com a entrada do baterista Remi Aguilella. Por ter tido uma boa infância e, apesar da feminilidade intrínseca ao nome, devido a essa reminiscência, surgiu-lhe o nome Daughter, nome que é tido como confortável para os três elementos e já distante do projecto de Elena a solo. 

Depois de dois EP (His Young Heart e The Wild Youthlançados em 2011, sendo Home retirado do segundo [mais electrónico e atmosférico que o anterior] percebe-se que a linha mestra que conduz o grupo se mantém, e esta coerência deriva sobretudo - à semelhança do que acontece com inúmeras outras bandas como Coldplay, Bon Iver, The XX, Cat Power -, do peso que a voz da vocalista imprime na balança trimétrica da banda.




Os Daughter vão actuar em Lisboa, no final de Novembro por ocasião do Vodafone Mexefest para divulgação de If You Leave, álbum de estreia no formato de longa duração. O título relaciona-se com amor e morte, temas presentes em todas as músicas do disco. Trata-se de evocar o medo que nunca se vê, o sentir da própria solidão e a sensação de abandono. Precisamente por ter tido uma infância feliz, aliás retratada nas capas dos EP, sente que necessita continuamente de protecção. Pode ser uma antecipação pessoal de quem escolhe reflectir sobre o depois da vida. Elena considera que quando morrer vai estar sozinha e define como aterrador um estado em que não encontra ninguém. A sensação é a mesma quando antevê a possibilidade de as pessoas lhe morrerem. Gosta de pensar sobre isso e de transportar esse interesse para a música. Esta linha e esta ideia emergem do tema Shallows.



Genericamente, as letras são autobiográficas. Relacionam-se com pensamentos e disposições pessoais. Elena desafia as emoções através da escrita. Serve-se da própria tristeza interior, e é esse seu lado escuro que considera a fonte verdadeiramente inspiradora que transforma em música. O tema Smother representa esse estado de espírito que denota culpa, talvez seja uma vontade de voltar atrás e fazer de modo diferente, ou, no limite não chegar a nascer: «I sometimes wish I'd stayed inside / my mother / never to come out». 



Assumindo com timidez as actuações em palco, é claramente com a voz, que Elena toma de assalto o público e o envolve, mantendo os olhos quase tapados pela franja e normalmente voltados para o chão. Reaproveitado do EP The Wild Youth, o tema Youth é uma amostra-testemunho que justifica a ascensão da banda.


Neste contexto, a canção Amsterdam é a excepção do álbum. O tema é uma espécie de comentário em relação ao comportamento humano. Foi escrita em Janeiro de 2012 numa viagem da banda a essa cidade. Trata-se da observação externa relativamente aos escapes mundanos: os vícios; as fugas; e todas essas maneiras de de alienação a que também se chama vida: «Good night with killing / Our brain cells / Is this called living / Or something else». 


Mas nem só de originais se ocupa esta banda, já reinterpretaram alguns temas de Bon Iver, Hot Chip, e também os Daft Punk tiveram a mesma sorte em Get Lucky. Através das entrevistas, ocasiões essas de maior improviso, percebemos que, embora a manifesta fragilidade e a natureza das emoções envolvidas na música da banda, o lado negro não se exterioriza. À transparência do momento revelam o melhor da sua juventude e da sua alegria. São graciosos, afáveis, e, como se pode comprovar na seguinte introdução desta versão acústica de Medicine, parecem bastante realizados com o que têm andado a fazer. Esta banda está a conquistar o mundo: é uma «filha» com três braços e todos os dias surgem novos pais para a proteger.

sábado, 5 de outubro de 2013

The Sea Close By

It's only an act:
 A. Camus wrote, 
 C. Paget read, 
 T.  Beard shot.


sexta-feira, 4 de outubro de 2013

Glossolalia

Curioso é o ruído que as coisas encerram dentro de si. Por exemplo, nos vidros que se estilhaçam. Esse barulho que sai de uma vez. Aquele primeiro momento relativo ao estrondo que nos chama. O segundo é o susto. Segue a consciência de não haver remédio perante o nosso pasmo. Depois, fixamos a imagem das coisas partidas. E vem-nos à ideia a inércia. A imobilidade presa às partes. Em todos e em cada um dos seus elementos, quando estatelado morre o que, antes, existia inteiro. Outras coisas há que não partem da mesma maneira. Podemos, no entanto, rasgar o papel para o ouvirmos, bater com força a madeira da porta, sacudir tecidos, puxar o arame da guita. Nestes casos, é mais a mão humana a liderar o discurso. Mas, afinal, se as coisas falassem, em que linguagem comunicaríamos? 



Com mais atenção, podemos afirmar que o plástico pertence a uma classe mais argumentativa. Se, por exemplo, pensarmos nos sacos do supermercado: inquietos, difíceis de dobrar, teimosos em ficar colados, encorrilhados, chatos. Parecem indomináveis no seu idioma artificial, mas haverá assim tantas emoções dentro de um saco? Não será a gravidade das outras coisas dentro deles? Ou, devido à correria de todos os dias, a nossa ansiedade em abri-los para os enchermos, e, a nossa pressa em guardá-los na gaveta? Às vezes, nem sabemos o que fazer a tanto plástico acumulado em casa. Só apetece acabar com ele. Servi-lo, hoje, sexta-feira, no contentor amarelo, sem pensar nisto... Porque então podemos escolher guardá-lo, estimá-lo bem, tratá-lo com paciência e, no fim de tudo, ainda concordar que pode estar vivo, mas tão vivo, como outra coisa qualquer. Basta que seja outono.


Glossolalia - é um fenómeno em que o indivíduo que o experiencia crê expressar-se em uma língua por ele desconhecida, que em geral não existe, mas por ele tida como de origem divina.

quinta-feira, 3 de outubro de 2013

LEGS + LEXUS > LEAD THE WAY

Aconteceu há menos de um mês na New York Fashion Week o evento que veio revolucionar o conceito de manequins sob uma passarela. Tratou-se de um poderosíssimo espectáculo de video mapping 3D, holográfico, desigual, inovador. A referir [antes foi aqui] a participação de Andrew Thomas Huang, director criativo da LEGS, também na génese desta representação. Um evento maquinal de teatro e dança, onde as personagens habitam um palco ficcional e a realidade perde espaço dando lugar às estruturas projectadas virtualmente. A sucessão de narrativas audiovisuais a par da coreografia tornaram este teatro futurista uma já realidade. De destacar, no papel principal, a brilhante interpretação metamorfósica da modelo canadiana Coco Rocha de 25 anos. 

Além da aclamação que se fez ouvir energicamente no final da actuação, ainda o espectáculo ia a meio e já estava patente o entusiasmo do público, através da quantidade de luzes paralelográmicas acesas nos aparelhos, com recurso a vídeo, que registavam o evento. São os sinais dos novos tempos: o primado da tecnologia, a chegada de um futuro aguardado que paradoxalmente não deixa de surpreender. Na nova era da imagem que se move, cabe à luz conduzir os cordelinhos das marionetas. E estas, passam a ser os elementos que à meia-vida sugerem a recriação de criaturas humanóides numa nova experiência de cor e imagem. 

Lexus Design Disrupted (Full Performance) from LEGS MEDIA

A música ficou a cargo da banda HEALTH. Um colectivo originário de Los Angeles dedicado ao rock experimental, alternativo, com um repertório de músicas cujas letras são, segundo os próprios, «intencionalmente vagas». Neste USA BOYS de 2010, a simbiose de ruídos industriais, agonizantes, com vocais melódicos foi a combinação hábil para evocar a história da personagem feminina central, de aparência frágil, que luta para combater as forças das trevas que vivem dentro de si, de todos os outros seres, e, de toda a matéria. Esta escolha musical, aliada à reprodução de grandes ilusões ópticas: hologramas, sombras movediças, explosões luminosas, bem como todo o trabalho coreográfico a cargo de Ryan Heffington proporcionaram uma espécie de materialização da energia cósmica que foi muito bem ilustrada em palco. Eu sei, William, «all the world's a stage, and all the men and women merely players» mas tudo agora parece bem mais à frente no caminho.

terça-feira, 1 de outubro de 2013

Spiegel im Spiegel

Espelho dentro de espelho, dentro de espelho, dentro de espelho, dentro do desejo de se conseguir uma infinitude de imagens. Qual efeito matrioska sobre a reflexão da realidade. A luz labiríntica de captar um determinado momento fazendo com que vá diminuindo, encaixando-o perfeitamente em tempo real. Move-se um olho, e perpetua-se o olho novo, cada vez mais pequeno, na moldura da imagem seguinte: exactamente igual, porém, de dimensão proporcionalmente inferior. Ou seja, uma tentativa de se conseguir uma história interminável na ausência de construção nova. Na literatura, Michael Ende teve essa ideia em 1984. Dito de outra forma: apenas uma repetição em escala, integrada. Como um todo, dir-se-ia da organização de um rearranjo interminável fruto de uma ilusão que, instantaneamente, se vai sucedendo. Na música, um espelho dentro de um espelho amplia-se. Assim fez Arvo Pärt em 1978. Usou esta lógica de somar o mesmo ao mesmo, como quem caminha na areia molhada deixando para trás as suas marcas perfeitas. Ao lado, o mar muito vivo: um violoncelo. O som é também um conjunto de ondas, mas estas pegadas são notas e quando a água vem deixamos de as ouvir.