domingo, 18 de agosto de 2013

L l a s a d e S e l a

Quando penso em coleccionismo, apercebo-me que as coisas que eu gosto mesmo de guardar têm muito valor sentimental mas valem pouco nos mercados, por isso, é com muita pena minha que não está aqui o bilhete de um concerto irrepetível onde tive o enorme privilégio de estar, há quase uma década, nos Jardins do Palácio de Cristal.

via Thumblr
Filha de um casal de hippies radicais (ele mexicano, ela norte-americana), nasce em 1972 a cantora que até aos 5 meses de idade não teve nome, altura em que a mãe despertada pela leitura do 'Libro Tibetano de la Vida y la Muerte'  achando-lhe feições parecidas com o rosto dos tibetanos, longe de compreender que a filha se iria identificar com a filosofia e religião budista do Tibete, decidiu dar-lhe o nome da capital: Lhasa. Até aos 13 anos nunca tinha ido à escola porque vivia no regime nómada adoptado em família, porém, Lhasa de Sela e as três irmãs liam todo o dia, não tinham televisão e ocupavam-se a imaginar, a escrever e a tocar música. Em entrevistas demonstrou sempre grande humildade e gratidão aos pais por lhe terem proporcionado uma infância invulgar à margem de sistemas instituídos, numa proximidade mais fiel à magia da vida, o que a fez tornar-se independente e única. Editou o primeiro álbum aos 24 anos e a morte levou-a aos 37. “La Llorona” (1997) é um dos meus álbuns preferidos de sempre. Contudo, o tema que intitula o álbum (e que Lhasa não gravou) faz parte das músicas tradicionais mexicanas e foi cantado por ela muitas vezes em concertos. La Llorona foi também um dos maiores sucessos de Chavela Vargas, aliás foi por esta interpretado no filme Frida (de Julie Taymor, em 2002), mas foi a Lhasa quem (apesar do seu bilhete de identidade canadiano) me beliscou maior curiosidade pelo México da Frida Kahlo e do Rivera.


A primeira canção do disco, De Cara A La Pared, é a chuva e os ritmos quentes latino-americanos e a chuva na dimensão de Lhasa é uma cortina de choro divino. Chora de frente para a parede, e a cidade apaga-se. Quando sonha de frente para a parede, a cidade arde. É um suspiro de saudade e de amor. E nesse misto de sentimento reza e termina por dizer que morre, deixando-se levar pelo gerúndio que a canção encerra. A música da Lhasa trás muita nostalgia mas é carnavalesca e é belíssima. Por Eso Me Quedo, é a quarta faixa e diz assim: "Asi ando yo/ Cantando aun mis penas/ queriendo que me ames/ para mi soledad. / Y hasta que yo te quiera/ Que quieres que te cante?". Envolvente e sofrida a canção é uma declaração de entrega, até que ela o deseje. Escreveu a sétima faixa, Floricanto, em conjunto com o pai, baseando-se em poemas sobre o conflito que o coração passa por amar tanto a vida sabendo que nada nem ninguém é imortal. A seguinte, Desdeñosa, é uma música tradicional do México. A sua interpretação, os arranjos que lhe fez e a força impressa na forma como verbaliza a letra edifica um momento poderosíssimo de auto-entrega ao sentimento de pesar de um desgosto de amor: "No necessito amar, no necessito/ Yo comprendo que amar es una pena/ Y que una pena de amor es infinito". El Pájaro foi escrito por ela e fala de abismo e de paixão. Próprio de quem vive intensamente a vida e não se contém com a experiência mediana das emoções.

Aparentemente, a lacuna escolar não se evidenciou pela vida que escolheu na música. Lhasa falava fluentemente em espanhol, inglês, francês e, apaixonada pelo Fado de Amália, chegou a cantar em português Meu Amor, Meu Amor, e também em arménio, tchetcheno e russo. Achava que em cada idioma a sua voz se alterava e vivia fascinada com as palavras e com a possibilidade de, em cada língua que cantava, fazer sair da sua boca milhares de anos de história. Sentia vergonha por não conhecer o idioma de um país que visitasse onde para conseguir comunicar tivessem de ser as pessoas dessas terras a traduzir-lhe a palavra falada, e, sempre disposta a aprender, esforçava-se genuinamente por respeitá-las tentando compreendê-las nas suas línguas nativas. Era portanto uma apátrida em relação aos países e aos idiomas, considerava-se como uma feliz abelha voando de flor em flor e colhendo o melhor em cada lado. E porque a música não morre assenta-lhe bem o rótulo de cantora do mundo dando sentido ao título do álbum de 2003, "The Living Road", de onde se extrai o maravilhoso Soon This Place Will Be Too Small


Também este álbum merece todo ser ouvido, escutado, apreciado, louvado. Na oitava faixa, Small Song, eu encontro uma versão própria da House of The Rising Sun (The Animals). Sempre desconcertante e fiel ao seu estilo único, lança em 2009 aquele que foi o último álbum com direito ao seu nome próprio. Rising é a segunda faixa, e uma esplendorosa canção:



Seis anos intercalaram os seus trabalhos porque a certa altura decide aproximar-se das irmãs que haviam formado um pequeno circo onde Lhasa se incluiu, dedicando-se a trabalhos performativos aliados ao canto. Vivia feliz em família. Porque apesar das letras serem soturnas Lhasa era muito feliz com a sua música, e penso que só sabia ser assim. Neste Love Came Here ao vivo (terceiro tema do disco) podemos vê-la chorar a rir. Ou assistir a um mini-concerto intimista com o Patrick Watson na interpretação conjunta de Between the Bars (Elliott Smith) e há muito mais para descobrir sobre ela em cada canção. 

Só uma pessoa muito especial para sair a meio da festa de ano novo, pois Lhasa desapareceu da terra em Montreal no dia 1 de Janeiro de 2010. Os seus últimos concertos aconteceram na Islândia, e eu não consigo imaginar lugar mais perfeito para despedidas. Quando penso na melhor música do mundo e em criaturas dotadas de uma sensibilidade mais elevada e com um estado de vida extra-terreno, lembro-me da Islândia. Parece distante e fria mas está já ali quando fechamos os olhos para sonhar. As memórias pertencem ao passado, os sonhos representam o futuro, e a vida é tão efémera que fico a pensar se haverá melhor colecção para fazermos na vida que não seja somar e aproveitar cada segundo que temos. Tic. Tac.