terça-feira, 6 de agosto de 2013

Erik Satie e a Liberdade

Também há certas gaivotas que vivem em todos nós.




Em vez de Be de Neil Diamond, as Gymnopédies de Erik Satie podiam pertencer à banda sonora da estória de Fernão Capelo Gaivota. Aqui esquecemo-nos de pensar no grasnar agudo que produzem em terra, exactamente o mesmo ruído que ouvimos na simples presença da palavra “gaivota”. A narrativa é acerca de outra espécie diferente: menos previsível, dotada de coragem mas frágil. E, sem demoras, vai-se dirigindo um foco de luz a essa ave em particular. O piano rasga o silêncio e serve de suporte. As sensações são muitas. Entramos na estória através do invisível braço gigante que parece um bico forte de pássaro, misturamos a textura da pele, das penas e até das estações do ano, no entanto, talvez seja Primavera no início da obra de Richard Bach porque “Era de manhã e o novo Sol cintilava nas rugas de um mar calmo.” Apresentava-se uma ave irrequieta que não se conformava com a sorte das outras. E apetece logo ir espreitar-lhe de muito perto as pupilazinhas pretas e tentar ver para dentro, mas o piano já tinha começado a ouvir-se.  


Parte I : Gymnopédie Nº 1 
Esta composição vaticina o gnosticismo preserverante de um espírito desalinhado. Há nuances de melancolia porque tudo o que é mesmo bonito raspa sempre o coração. Podia ser uma manhã qualquer de um dia qualquer mas Fernão Capelo não era uma gaivota vulgar, por isso, o dia é exactamente aquele dia que lhe pertence e que tem de ser contado. “Ele” queria aprender coisas que as outras aves não desejavam saber. Interessava-se por voar mais alto, a maior velocidade e, outras vezes, mais devagar somente pelo gosto da ventura e, por isso, é banido do bando. A música de Satie que eu escolheria para encostar a esta narrativa espelha aquela gaivota destemida em acrobacias que se torna solitária. Tenta subir e voar, não consegue e volta a tentar. O compasso musical é impestuoso como a escalada da ave aos céus. O estado da ave é claramente invulgar. Quer ir mais além. Há nuvens. Sente-se o vento. Mas a chuva nunca vem. (A chuva dos livros traz sempre coisas tristes e esta estória é de esperança e alegria.) O tempo vai passando e os pequenos olhos não encontram presenças humanas. Em todo o caso, se calhar, lá em baixo (onde deve haver o mar) passa uma traineira com gente mas, provavelmente, não há ninguém. De repente a sorte muda e Fernão Capelo encontra um companheiro que o leva a ascender a outro lugar onde se sente compreendido.

Parte II : Gymnopédie Nº 2 
“Então o paraíso é isto” pensou. Agora todas as gaivotas estão em comunhão com a nossa. O prazer de voar é partilhado. O divino parece andar a poucos metros daquelas altitudes. São felizes por estar livres, iguais a si mesmas. Quebrando os próprios limites num lugar novo sem espaço e sem tempo. Porém, o coração continua fechado. "Fernão, continua a trabalhar no amor", dizia-lhe o mestre tentando fazê-lo perceber que a liberdade só existe no mesmo binómio que a compaixão. O seu sucesso seria tornar-se ele próprio professor e para isso tem de retornar ao seu antigo bando e espalhar esta sabedoria fruto da sua experiência. 

Parte III : Gymnopédie Nº 3 
Foi esse o novo e grande ensinamento que o fez observador do sítio original. “Fernão voou em círculo, devagar...“ e encontrou vários pupílos interessados na arte de voar pelo prazer de voar. Finalmente, só a capacidade de perdoar que é sinónima de libertação das regras o faz verdadeiramente livre. O caminho para a perfeição são os pensamentos que o deixam repousar suspenso no ar. E a liberdade é quando só o coração comanda. 

Erik Satie continuou a compor e as Gnossiennes vieram tirar a liberdade a muitas gaivotas que, como eu, tiveram de parar de voar para ouvir. 


Ainda hoje, quando muito, posso sentar-me na tábua que as cordas seguram da árvore, fechar os olhos e tirar os pés do chão porque sei que alguém me vai empurrar a seguir.