terça-feira, 8 de outubro de 2013

Coisas

Uma das palavras mais usadas para dizer tudo sempre que não ocorre nenhuma mais acertada. Uma palavra polivalente e, desta feita, o mesmo acontece ao verbo coisar. Portanto, não é incorrecto eu dizer que coiso e aconteço. Tu também coisas e você que me lê, mais tarde ou mais cedo, há-de vir a coisar. Podemos continuar esta conversa coisa e tal. Aliás, o acordo ortográfico não coisou esta palavra. Confirmei no dicionário. Não havia nada a mudar nela e ficou como estava, ilesa a retoques. Nada se lhe retirou ou acrescentou. Mas digamos que me custa um coiso falar desta maneira redundante das coisas em geral. Mesmo a itálico, sei lá, fico coisa de omitir o nome mais justo atribuído a todas as coisas e a cada coisa em particular. Só o facto de pensar nestas coisinhas faz-me perceber que deixa de ser preciso raciocinar aquele tempo. O necessário para conceber idealmente o meu discurso. Encher o pensamento livre de palavras e caçar aquela mais ajustada à ideia. E isso é uma coisa que gosto muito de fazer. Entretanto, já passei de uma dúzia de utilizações. Que palavra tão gasta. Não gosto da falta de brilho inerente à repetição, e satisfaz-me ter o trabalho de decidir-me por outras. Mas até as palavras são coisas. Catorze vezes. São só coisas. Quinze. E eu tenho coisas mais importantes para fazer do que ficar aqui a contar. 



domingo, 6 de outubro de 2013

D a u g h t e r

Raízes: 2010, Londres. Folhagens: 2013, Mundo. 

Elena Tonra trabalhava a solo, ou antes, criava a sua música. Filha de mãe italiana e pai irlandês, aos treze anos recebeu um álbum de Jeff Buckley oferecido pelo pai, sentindo esse o momento em que percebeu o que era a música. Desde cedo dedicada à escrita de poemas por se sentir solitária e inadaptada, mais tarde, é por meio da guitarra do irmão mais velho que decide transformá-las em canções, de cariz melancólico, iniciando o seu caminho como cantautora. Faltavam Igor e Remi, mas a banda acabou por se cruzar no Institute of Contemporary Music Performance e o trio conta agora com três anos de percurso. Quando conheceu Igor Haefeli na escola de música, e este se dispôs a tocar guitarra com ela nas actuações ao vivo, percebeu que os estilos se conjugavam e decidiu expandir a sua música. Nessa altura, o que começou por ser uma favor de um colega, rapidamente se tornou numa banda, mais tarde com a entrada do baterista Remi Aguilella. Por ter tido uma boa infância e, apesar da feminilidade intrínseca ao nome, devido a essa reminiscência, surgiu-lhe o nome Daughter, nome que é tido como confortável para os três elementos e já distante do projecto de Elena a solo. 

Depois de dois EP (His Young Heart e The Wild Youthlançados em 2011, sendo Home retirado do segundo [mais electrónico e atmosférico que o anterior] percebe-se que a linha mestra que conduz o grupo se mantém, e esta coerência deriva sobretudo - à semelhança do que acontece com inúmeras outras bandas como Coldplay, Bon Iver, The XX, Cat Power -, do peso que a voz da vocalista imprime na balança trimétrica da banda.




Os Daughter vão actuar em Lisboa, no final de Novembro por ocasião do Vodafone Mexefest para divulgação de If You Leave, álbum de estreia no formato de longa duração. O título relaciona-se com amor e morte, temas presentes em todas as músicas do disco. Trata-se de evocar o medo que nunca se vê, o sentir da própria solidão e a sensação de abandono. Precisamente por ter tido uma infância feliz, aliás retratada nas capas dos EP, sente que necessita continuamente de protecção. Pode ser uma antecipação pessoal de quem escolhe reflectir sobre o depois da vida. Elena considera que quando morrer vai estar sozinha e define como aterrador um estado em que não encontra ninguém. A sensação é a mesma quando antevê a possibilidade de as pessoas lhe morrerem. Gosta de pensar sobre isso e de transportar esse interesse para a música. Esta linha e esta ideia emergem do tema Shallows.



Genericamente, as letras são autobiográficas. Relacionam-se com pensamentos e disposições pessoais. Elena desafia as emoções através da escrita. Serve-se da própria tristeza interior, e é esse seu lado escuro que considera a fonte verdadeiramente inspiradora que transforma em música. O tema Smother representa esse estado de espírito que denota culpa, talvez seja uma vontade de voltar atrás e fazer de modo diferente, ou, no limite não chegar a nascer: «I sometimes wish I'd stayed inside / my mother / never to come out». 



Assumindo com timidez as actuações em palco, é claramente com a voz, que Elena toma de assalto o público e o envolve, mantendo os olhos quase tapados pela franja e normalmente voltados para o chão. Reaproveitado do EP The Wild Youth, o tema Youth é uma amostra-testemunho que justifica a ascensão da banda.


Neste contexto, a canção Amsterdam é a excepção do álbum. O tema é uma espécie de comentário em relação ao comportamento humano. Foi escrita em Janeiro de 2012 numa viagem da banda a essa cidade. Trata-se da observação externa relativamente aos escapes mundanos: os vícios; as fugas; e todas essas maneiras de de alienação a que também se chama vida: «Good night with killing / Our brain cells / Is this called living / Or something else». 


Mas nem só de originais se ocupa esta banda, já reinterpretaram alguns temas de Bon Iver, Hot Chip, e também os Daft Punk tiveram a mesma sorte em Get Lucky. Através das entrevistas, ocasiões essas de maior improviso, percebemos que, embora a manifesta fragilidade e a natureza das emoções envolvidas na música da banda, o lado negro não se exterioriza. À transparência do momento revelam o melhor da sua juventude e da sua alegria. São graciosos, afáveis, e, como se pode comprovar na seguinte introdução desta versão acústica de Medicine, parecem bastante realizados com o que têm andado a fazer. Esta banda está a conquistar o mundo: é uma «filha» com três braços e todos os dias surgem novos pais para a proteger.

sábado, 5 de outubro de 2013

The Sea Close By

It's only an act:
 A. Camus wrote, 
 C. Paget read, 
 T.  Beard shot.


sexta-feira, 4 de outubro de 2013

Glossolalia

Curioso é o ruído que as coisas encerram dentro de si. Por exemplo, nos vidros que se estilhaçam. Esse barulho que sai de uma vez. Aquele primeiro momento relativo ao estrondo que nos chama. O segundo é o susto. Segue a consciência de não haver remédio perante o nosso pasmo. Depois, fixamos a imagem das coisas partidas. E vem-nos à ideia a inércia. A imobilidade presa às partes. Em todos e em cada um dos seus elementos, quando estatelado morre o que, antes, existia inteiro. Outras coisas há que não partem da mesma maneira. Podemos, no entanto, rasgar o papel para o ouvirmos, bater com força a madeira da porta, sacudir tecidos, puxar o arame da guita. Nestes casos, é mais a mão humana a liderar o discurso. Mas, afinal, se as coisas falassem, em que linguagem comunicaríamos? 



Com mais atenção, podemos afirmar que o plástico pertence a uma classe mais argumentativa. Se, por exemplo, pensarmos nos sacos do supermercado: inquietos, difíceis de dobrar, teimosos em ficar colados, encorrilhados, chatos. Parecem indomináveis no seu idioma artificial, mas haverá assim tantas emoções dentro de um saco? Não será a gravidade das outras coisas dentro deles? Ou, devido à correria de todos os dias, a nossa ansiedade em abri-los para os enchermos, e, a nossa pressa em guardá-los na gaveta? Às vezes, nem sabemos o que fazer a tanto plástico acumulado em casa. Só apetece acabar com ele. Servi-lo, hoje, sexta-feira, no contentor amarelo, sem pensar nisto... Porque então podemos escolher guardá-lo, estimá-lo bem, tratá-lo com paciência e, no fim de tudo, ainda concordar que pode estar vivo, mas tão vivo, como outra coisa qualquer. Basta que seja outono.


Glossolalia - é um fenómeno em que o indivíduo que o experiencia crê expressar-se em uma língua por ele desconhecida, que em geral não existe, mas por ele tida como de origem divina.

quinta-feira, 3 de outubro de 2013

LEGS + LEXUS > LEAD THE WAY

Aconteceu há menos de um mês na New York Fashion Week o evento que veio revolucionar o conceito de manequins sob uma passarela. Tratou-se de um poderosíssimo espectáculo de video mapping 3D, holográfico, desigual, inovador. A referir [antes foi aqui] a participação de Andrew Thomas Huang, director criativo da LEGS, também na génese desta representação. Um evento maquinal de teatro e dança, onde as personagens habitam um palco ficcional e a realidade perde espaço dando lugar às estruturas projectadas virtualmente. A sucessão de narrativas audiovisuais a par da coreografia tornaram este teatro futurista uma já realidade. De destacar, no papel principal, a brilhante interpretação metamorfósica da modelo canadiana Coco Rocha de 25 anos. 

Além da aclamação que se fez ouvir energicamente no final da actuação, ainda o espectáculo ia a meio e já estava patente o entusiasmo do público, através da quantidade de luzes paralelográmicas acesas nos aparelhos, com recurso a vídeo, que registavam o evento. São os sinais dos novos tempos: o primado da tecnologia, a chegada de um futuro aguardado que paradoxalmente não deixa de surpreender. Na nova era da imagem que se move, cabe à luz conduzir os cordelinhos das marionetas. E estas, passam a ser os elementos que à meia-vida sugerem a recriação de criaturas humanóides numa nova experiência de cor e imagem. 

Lexus Design Disrupted (Full Performance) from LEGS MEDIA

A música ficou a cargo da banda HEALTH. Um colectivo originário de Los Angeles dedicado ao rock experimental, alternativo, com um repertório de músicas cujas letras são, segundo os próprios, «intencionalmente vagas». Neste USA BOYS de 2010, a simbiose de ruídos industriais, agonizantes, com vocais melódicos foi a combinação hábil para evocar a história da personagem feminina central, de aparência frágil, que luta para combater as forças das trevas que vivem dentro de si, de todos os outros seres, e, de toda a matéria. Esta escolha musical, aliada à reprodução de grandes ilusões ópticas: hologramas, sombras movediças, explosões luminosas, bem como todo o trabalho coreográfico a cargo de Ryan Heffington proporcionaram uma espécie de materialização da energia cósmica que foi muito bem ilustrada em palco. Eu sei, William, «all the world's a stage, and all the men and women merely players» mas tudo agora parece bem mais à frente no caminho.

terça-feira, 1 de outubro de 2013

Spiegel im Spiegel

Espelho dentro de espelho, dentro de espelho, dentro de espelho, dentro do desejo de se conseguir uma infinitude de imagens. Qual efeito matrioska sobre a reflexão da realidade. A luz labiríntica de captar um determinado momento fazendo com que vá diminuindo, encaixando-o perfeitamente em tempo real. Move-se um olho, e perpetua-se o olho novo, cada vez mais pequeno, na moldura da imagem seguinte: exactamente igual, porém, de dimensão proporcionalmente inferior. Ou seja, uma tentativa de se conseguir uma história interminável na ausência de construção nova. Na literatura, Michael Ende teve essa ideia em 1984. Dito de outra forma: apenas uma repetição em escala, integrada. Como um todo, dir-se-ia da organização de um rearranjo interminável fruto de uma ilusão que, instantaneamente, se vai sucedendo. Na música, um espelho dentro de um espelho amplia-se. Assim fez Arvo Pärt em 1978. Usou esta lógica de somar o mesmo ao mesmo, como quem caminha na areia molhada deixando para trás as suas marcas perfeitas. Ao lado, o mar muito vivo: um violoncelo. O som é também um conjunto de ondas, mas estas pegadas são notas e quando a água vem deixamos de as ouvir.